Cortando verduras e raiva em pedacinhos

Crônica sobre um acontecimento banal e uma irritação de cinema

Regiane Folter
3 min readApr 25, 2020

Ontem estava cortando um vistoso pimentão vermelho e terminei cortando o dedão. O cortezinho até que foi profundo, mas nada grave, mais susto que qualquer coisa. Na hora soltei um palavrão, larguei faca e verdura para assistir o sangue que saia com uma profusão exagerada do corte minúsculo. Para evitar uma mini hemorragia, peguei uma boa quantidade de guardanapos, um pouco de fita crepe que achei ali perto e revesti o dedão. Precisava dar um jeito no sangramento e continuar preparando o jantar.

Depois de improvisar aquele curativo quase culinário já não sentia dor. O dedão continuava latejando baixinho, mas estava totalmente funcional. Xinguei algumas vezes mais pra não perder o hábito e voltei minha atenção à janta. Havia sobrevivido ao pseudo-acidente, mas com um humor totalmente diferente de quando comecei a preparar a refeição. Antes, toda faceira, assobiava contente enquanto tirava os ingredientes da geladeira, planejando uma feliz comilança. Agora, irritadíssima com aquele corte que não estava nos meus planos e que não me deixava segurar a faca direito nem usar a pia como era devido. Afinal, se molhasse a massaroca de guardanapo meu curativo perderia toda sua utilidade.

E como assim eu grito na cozinha e ninguém vem ver se estou viva ou morta? E você que finalmente decidiu aparecer, o que é que está olhando? Mas que saco, viu!

Agora que penso, estava tão enfocada em meu mau-humor e em reclamar desse mundo cruel que terminei usando a mesma faca com a que me cortei para picar tudo que usei naquele jantar. Pouco higiênico, né não? Mas o que podia fazer, a raiva é uma coisinha ardilosa. Tudo fica vermelho e não enxergamos mais nada. E falando nessa cor, em minha defesa o sangue e o pimentão também são da mesma cor, então eu nem reparei mesmo. Fazer o que.

Enfim, não mudarei de assunto. O que queria destacar com essa história toda é minha capacidade de ser tão boba. De deixar que uma coisinha ínfima determine meu estado de espírito. De permitir que uma bobagem transformasse o ato alegre de cozinhar em uma penúria.

Não é a primeira vez que isso acontece comigo, e provavelmente com você tampouco. Identifico essa tendência de fazer tempestade em um copo d’água nas mais diversas pessoas do meu entorno, o que me leva a pensar que isso é algo do ser humano de forma geral. Provavelmente é uma das coisas mais nossas que mais detesto. Me sinto tão sem controle quando algo assim acontece, quando dou espaço para sentimentos negativos que não tinham nada a ver com a situação.

É um círculo vicioso. Porque me irrito, me sinto mal porque me irrito, culpada também, e com tudo isso só consigo me sentir ainda pior, mais irritada e mais verborrágica na quantidade de palavrões (que eu nem sabia que sabia).

Como cortar esse círculo, você me pergunta? Olha, ainda não sei. Só sei que com aquela faca de cozinha manchada de sangue não foi, porque a usei para picar em pedacinhos todas as verduras da receita e ainda me sentia zangada no final. Tenho a leve impressão de que para sair dessa roda de negatividade é preciso usar nossa própria mente como ferramenta. Uma cuca afiada deve ser o instrumento ideal para transformar o drama em migalhas sem sentido e só deixar intactos o bom humor e nossa capacidade de dizer “ah, que chato. Mas tudo bem, segue o baile”.

Ainda não tenho essa cuca, como essa crônica ilustra bem. Mas devagarzinho vamos chegando lá. Hoje olho meu dedão envolto em um curativo mais apropriado — band aid — e lembro do episódio de ontem com um pouco de vergonha, mas mais que tudo com graça. Já estou me curando, do corte e do ataque de raiva. Espero que a cicatriz que fique (provavelmente invisível) seja suficiente lembrete quando outro momento de explosão aparecer no horizonte.

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Written by Regiane Folter

Escritora brasileira vivendo no Uruguai 🌎 Escrevendo em português e espanhol 🖋️ Compre meus livros: https://www.regianefolter.com/livros

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