Lar

Sensação de aconchego

Regiane Folter
6 min readJul 2, 2024
Bello y gris Montevideo

É domingo de manhã. Faz frio. Mesmo assim, abro decidida as portas que conectam a sala com a sacada. Imediatamente entra aquela brisa gelada típica do inverno uruguaio, e eu estremeço. Saio dali por uns segundos e logo retorno com uma blusa térmica bem felpuda e uma caneca de chá fumegante. Combato o frio como posso e saio pra sacada, decidida a apreciar a vista.

Olho pra cima. O dia está lindo, azul, brilhante. Sinto os raios tímidos do sol, que promete subir a temperatura alguns graus e deixar o inverno mais tolerável. Vários prédios rodeiam o nosso e aqui do primeiro andar não consigo ver muito do céu. Ele está entrecortado por construções antigas e novas, cinzentas e de tons pasteis, além das copas de árvores amareladas. Respiro fundo e capto no ar o aroma das suas folhas, assim como um cheirinho gostoso de pão no forno que vem da padaria ao lado.

Quando olho pra direita, lá no fundo da rua posso visualizar a rambla, ou calçadão como diria em português. Não chego a ver a água do rio-mar que acompanha a costa de Montevidéu, mas sei que está lá e isso me faz sorrir. Sempre gostei de viver em cidades litorâneas e essa é uma das principais coisas pelas quais agradeço viver aqui.

Mudo de lado e à minha esquerda posso ver parte da majestosa praça Independência, onde fica o monumento de Artigas, o palácio do governo, um hotel chique e outras construções, de novo, velhas e novas. Montevidéu inteira é assim, uma mistura do antigo com o moderno. Décadas e mais décadas de história ao lado de prédios que ainda têm cheiro de tinta fresca. E árvores, muitas árvores, por todos os lados.

Se olho diretamente pra frente, do outro lado do meu prédio há um edifício abandonado. Se trata de uma construção sólida, enorme, mas tristonha; não possui paredes, nem cores além do cinzento cimento. Se vê que na metade do caminho alguém mudou de ideia e esse prédio nunca se transformou no que deveria ser. Dizem as vizinhas que a prefeitura agora é dona do lugar e que no futuro vai se tornar algo. Espero que assim seja.

Vejo movimento na rua de casa, a rua Florida, que liga a praça até a rambla. Pessoas caminham de um lado pro outro, talvez um pouco menos apressadas que num dia de semana, mas ainda assim interessadas em chegar a seus destinos. Algumas levam sacolas de supermercado ou de feira, outras caixas com encomendas, algumas carregam flores. Passos ágeis ou menos, vejo turistas com câmeras fotográficas, trabalhadores, crianças que correm e seus gritos chegam até mim, aqui no meu camarote que é essa pequena sacada. Então sinto algo quentinho roçar minhas pernas e olho pra baixo. No chão de concreto antigo da sacada vejo folhas caídas e um gatinho negro que mia quando vê que conseguiu chamar minha atenção.

Sigo meu bichano com a mirada enquanto ele funga duas vezes em direção ao mundo lá fora e logo dá ré e volta pro conforto e calor da nossa casa. Diferentemente de mim, ele não é tão amigo da sacada. O barulho dos ônibus e das pessoas muitas vezes o assusta.

Ainda assim, não é a rua mais barulhenta onde já vivi nessa cidade. Desde que cheguei a Montevidéu, há 10 anos, já morei em 7 casas:

  1. O prédio em frente à prefeitura
  2. O infame Palácio Salvo, uma joia da arquitetura uruguaia
  3. Um quartinho mofado dentro de uma residência estudantil
  4. Uma pseudo kitnet que foi nosso primeiro lar com o meu companheiro Ja
  5. Uma casa enorme num bairro badalado
  6. Um prédio em uma rua pacata não muito longe daqui
  7. O edifício de dois andares onde vivemos agora

Todos foram especiais, todos tiveram seus altos e baixos, momentos lindos e ruins. Mas sem dúvida a casa número 7 é algo a mais, porque aqui não somos inquilinos e sim proprietários. Bom, tecnicamente, o dono do nosso apartamento é o banco até que terminemos de pagar o empréstimo. Mas mesmo assim me dou o luxo de sentir-me rainha desse pequeno apartamento-palácio que surgiu em nossas vidas de forma tão inesperada.

Dou as costas pra sacada e observo meu lar. Primeiro vejo a sala, provavelmente o cômodo mais amplo da casa, onde passamos tempo vendo televisão ou tendo as refeições. Amo a parede de tijolinho à vista, detalhe decorativo que já estava aqui quando nos mudamos. A sala também abriga uma plantinha que vem resistindo bem às mudanças e um bar cheio de garrafas reluzentes, parecido ao que temos lá na casa da mamãe.

Do lado dessa sala está outra, bastante menor, mas que possui sua própria sacada. Nessa salinha passamos boa parte do dia, porque é nosso escritório. Lá fica a mesa grande de madeira que mandamos fazer à medida e onde nos sentamos para trabalhar. Também estão lá a biblioteca e uma confortável poltrona que minhas amigas me deram de presente pra ter um lugar gostoso para ler. Claro que o principal usuário dessa poltrona é o gatinho negro, que tira boas sonecas enquanto nós estamos ganhando o pão de cada dia.

Me sento no sofá, mas sigo pensando nos outros cômodos. Da onde estou posso ver um pedacinho do corredor que leva pra entrada do apartamento, outro espaço amplo e ventilado graças a um pulmão de ar localizado no centro do edíficio. Essa estrutura de metal e vidro é o que conecta nossa casa com o ar lá fora, já que nosso prédio está rodeado por outros e não possui janelas além das sacadas. Nesse corredor podemos ver a cozinha, pequena, mas totalmente funcional. Ao lado dela, um banheiro também pequenino.

Volto a pensar na sala e encaro a porta que leva ao nosso quarto. O cômodo onde dormimos também se conecta com o corredor principal. Ao lado do quarto fica outro, do mesmo tamanho. Esse cômodo é o mais maluco porque não tem uma única função: é quarto porque tem o sofá-cama onde dormem as visitas; é depósito onde guardamos coisas que não encaixam com as outras partes da casa; e também é oficina onde Ja cria suas invenções.

Sinto que essa casa é um work in progress. Ainda que totalmente funcional e usável, há tantas coisas que gostaria de fazer nela… E não seriam todas as casas assim, algo que nunca para de se re-inventar conforme nós mudamos ou novas necessidades surgem?

Entre as coisas que queremos fazer está derrubar algumas paredes, ampliar espaços, trazer mais luz pra dentro, implementar soluções mais lindas e práticas pra abrigar nossos corpos e interesses, projetos e comodidades, e uma família que ainda deveria crescer mais. Pensar em todos esses planos muitas vezes faz a minha ansiedade disparar. Suspiro pensando em como seria bom ter todo o dinheiro do mundo e fazer todas essas mudanças o mais rápido possível. Mas essa é uma irrealidade e preciso ter paciência. Nossos sonhos virão do esforço, do trabalho, de juntar cada moedinha e ter um objetivo em comum.

Ja diz que é preciso aproveitar cada passo, cada mudança, cada reparo. Sentir o que estamos vivendo hoje, o que temos, como nossa casinha é agora, e não ficar só pensando no futuro. Ele tem razão, como muitas vezes tem. Respiro fundo para apaziguar a ansiedade e decido me enfocar na alegria de ter esse teto, de poder chamá-lo de nosso, e de saber que continuaremos trabalhando por ele, para deixá-lo cada vez melhor e cada vez mais nosso.

Sinto o calor do bichano sentado no sofá ao meu lado e escuto a voz de Ja vindo de outro cômodo. Me permito desfrutar da sensação de aconchego de saber que não estou sozinha e que o lugar onde me sinto mais em casa é dentro do abraço de outra pessoa.

Afinal, nada é tão maravilhoso quanto sentir-se parte de um lar, seja ele como for, com quem for, onde for…

Esse texto nasceu a partir de uma atividade do curso online “Todo es escribible” da autora Aniko Villalba. Recomendadíssimo!

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Written by Regiane Folter

Escritora brasileira vivendo no Uruguai 🌎 Escrevendo em português e espanhol 🖋️ Compre meus livros: https://www.regianefolter.com/livros

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