Tem livro que muda a gente para sempre

“A sombra do vento” tem tudo que um dia eu gostaria de ser capaz de escrever

Regiane Folter
4 min readDec 21, 2020
Amazon.es

A primeira vez que li a história de Daniel, Clara, Sr. Sempere, Fermin e todos os outros personagens do romance “A sombra do vento”, eu ainda era adolescente. Naquela época, todas as histórias de amor e drama me enfeitaçavam e com esse livro não foi diferente. Me apaixonei por cada uma das suas pessoas e a forma como elas se enredam em uma trama que mistura tristeza, alegria, mistério, comédia e tantos temperos mais.

É um livro para escritores. Já em seus primeiros capítulos descobrimos que a história gira ao redor de um cemitério de livros esquecidos em plena Barcelona, um local mágico repleto de obras magistrais que foram proibidas ou simplesmente se perderam com o tempo. Um lugar sonhado para todos que amamos as histórias, um lugar aonde aspiramos ir e até mesmo deixar nossas próprias palavras.

Além do enredo, a maneira como o autor Carlos Ruiz Zafón escreve por si só já é suficiente razão para se viciar nesse livro. Há um magnetismo no jeito como ele conecta palavras e frases, na sua tendência de sobre-descrever os lugares, as pessoas, os sentimentos. Os adjetivos que escolhe, os verbos sem cabimento que utiliza, as frases extensas que se conectam, os parágrafos que se multiplicam em um excesso de contar e conversar e pensar e fazer coisas que geram mais movimentos, como se estivéssemos em um tabuleiro de xadrez. Tudo isso se desenvolve graças à forma como Zafón faz da palavra algo tão seu e criou assim uma marca própria, que está nesse livro e também dá forma a muitas outras histórias que escreveu antes e depois dele.

Essa obra é a primeira de uma série de quatro de livros entrelaçados por uma mesma história (ou seria um conjunto de histórias?) que se propaga pelo tempo e pelos distintos cenários da Espanha, com destaque especial para Barcelona e Madri. Inclusive faço um parênteses para dizer que quando estive por lá em 2019 me senti dentro douniverso de Daniel, Julian e todos esses personagens amaldiçoados e encantadores. Porque realmente é disso que se trata a trama, de diferentes gerações que se tornam protagonistas em uma maldição causada por amor em excesso ou em falta. Os personagens dessa história deixam nela um pouco de si e a transformam com seus traumas, preconceitos, sonhos e medos. Do primeiro ao último livro, a história vai se tornando cada vez mais complexa e escura com base no que cada personagem deixa detrás de si.

Voltei a ler esse livro alguns anos mais tarde e, embora estivesse mais velha e teoricamente mais madura, a leitura voltou a abalar minhas estruturas. Não consegui encontrar razões para criticar: tudo continuava no mesmo lugar. Senti a mesma emoção, o mesmo prazer com as doces descobertas que o livro traz, a mesma indignação frente aos plot twists e problemas que sofrem heróis tão queridos, o mesmo calor ao ler a maneira suave ou brusca como cada personagem conhece o que é o amor. Voltei a admirar a maneira como Zafón escrevia, voltei a me surpreender com sua capacidade de me fazer agarrar o livro e esquecer tudo, para somente me dedicar a ler e ler e ler.

Há anos esse livro é o meu preferido e olha que eu leio, hein! Mas esse segue aí, no topo do pódio, porque representa magistralmente o tipo de livro que me ganha: uma boa história, escrita de uma forma única, que nos leva dessa realidade e nos faz sentir, sofrer e amar com os seus protagonistas, tão reais como as pessoas que conhecemos. Tão cheios de defeitos e qualidades como nós mesmos.

A escrita intrincada e bela de Zafón me faz lembrar de vitrais; delicados, difíceis de montar, mas tão hipnóticos que é difícil desviar o olhar. Esse ano esse autor grandioso faleceu, então penso com tristeza que o mundo do cemitério dos livros esquecidos nunca mais vai aparecer em uma nova história. Espero que mais escritores como eu se inspirem nas palavras desse artista para criar novos mundos com personagens que nos façam emocionar e continuar a amar tudo que os livros são e geram em nós.

http://www.tumblr.com/blog/lachabolademineurona

--

--

Regiane Folter
Regiane Folter

Written by Regiane Folter

Escritora brasileira vivendo no Uruguai 🌎 Escrevendo em português e espanhol 🖋️ Compre meus livros: https://www.regianefolter.com/livros

No responses yet