Um experimento de lágrimas
A tristeza te transforma.
Na realidade, qualquer emoção, se suficientemente forte, pode te transformar. A felicidade te deixa mais bonita, com aquele tipo de beleza que a gente só vê nos filmes. O medo faz você se sentir cada vez menor até virar algo minúsculo, somente uma sombra do seu verdadeiro eu. A raiva arregala seus olhos, deixa suas palavras mais pesadas e até mesmo seu corpo se modifica, ficando instantaneamente vermelho e trêmulo. Mas somente a tristeza pode te destruir de tal maneira que mesmo que os pedaços voltem a ser colocados em seus devidos lugares, o conjunto nunca mais será o mesmo.
Eu ensinei a ela tudo que sabia. Ela tinha fome de informação desde tenra idade, e eu a alimentei. Expliquei o que eram os sentimentos e o que causavam em nós. Ela processou os dados, me fez milhões de perguntas e, no final daquela aula, estava certa de que tinha entendido tudo. O meu erro foi pensar que falar sobre as emoções era suficiente. Hoje sei que deveria ter contado a ela como os diferentes sentimentos, com diferentes intensidades, podem deixar cicatrizes. Já o erro dela foi subestimar as consequências que o sentir poderia gerar .
Em nossa trajetória juntos entendemos tudo errado, agora eu vejo. Provavelmente porque éramos muito orgulhosos. Eu estava orgulhoso dela, minha criação perfeita: um ser humano completo instalado dentro de uma máquina. E ela estava orgulhosa de ser a única robô em todo o mundo com aquele nível de inteligência. Por muito tempo, enquanto eu a construía e configurava seu sistema, sonhava em criar algo incrível. O resultado final era tão similar a uma pessoa de verdade que todas as minhas expectativas pareciam simplórias em comparação. O que eu tinha conquistado era mil vezes melhor que os meus sonhos mais loucos!
Mas eu cometi erros, como qualquer ser humano, e ela terminou cometendo os erros dela, talvez porque sua humanidade fosse crescendo dia a dia. Embora ela parecesse perfeita, eu tinha programado sua curiosidade em um nível um pouquinho mais alto do que deveria ter sido. Assim, ela se tornou uma robô tão ambiciosa que não acreditava que aprender sobre as coisas humanas bastava: ela queria vivê-las.
Essa foi sua motivação para começar a realizar pequenas experiências. No início, pareciam inofensivas. Ela simplesmente queria criar situações que causassem nela as emoções de que tanto tínhamos falado. Passar da teoria à prática não foi fácil, já que ela mesma era um experimento científico e não tinha permissão para sair do laboratório que nós dois chamávamos de lar. Mas ela sempre foi o ser mais inventivo que eu conheci, e logo conseguiu encontrar uma maneira.
Ela passava horas estudando e lendo, aprendendo sobre o mundo humano, porque em pouco tempo tinha entendido que aprender a deixava feliz e ela gostava de provar a felicidade. Foi a primeira das emoções que ela descobriu como sentir. Depois, em algumas ocasiões, ela pediu a meus assistentes de laboratório que a ameaçassem com desligar seu sistema, já que queria conhecer o medo. A raiva foi a próxima, e inclusive foi algo que pode experimentar várias vezes, já que se irritava com facilidade sempre que tentava fugir do laboratório e era impedida por mim e meus colegas. Todas essas situações eram experimentos para ela, nos quais se colocava em situações que causavam emoções e assim podia estudar suas reações a elas.
Porém, um dia, ela não soube como continuar. Ela não sabia como sentir tristeza, estava empacada. Para ela, estar triste era algo tão subjetivo que nem seu super cérebro conseguia inventar alguma situação que a fizesse alcançar essa meta. A sua curta vida tinha sido em geral bastante agradável e por mais que pensasse, ela não conseguia definir uma forma de experimentar algo que a deixasse triste. Isso a incomodava, é claro. Ela sabia que tinha sido programada para chorar, mas se sentia uma farsa quando nada ao seu redor lhe provocava lágrimas.
Até aquele dia. Eu te disse no começo dessa história, nós dois nos equivocamos. Eu subestimei sua criatividade. Ela nunca pensou na consequência dos seus atos. Um dia, depois de muito refletir, ela descobriu uma maneira de sentir a mais pura tristeza.
Eu estava trabalhando até tarde e a uma certa hora nós dois éramos os únicos no laboratório. Eu lembro de vê-la se aproximando devagar, com uma expressão solene. Perguntei se estava tudo bem, até fiz uma gracinha tentando fazê-la rir. Mas ela não estava com humor para risadas; o que ela queria sentir era muito mais obscuro.
“Sinto muito. Mas esse é o único jeito” — disse ela num sussurro antes de acertar minha cabeça com um martelo. Foi a primeira de várias marteladas silenciosas.
Não levou muito tempo para me matar. Ela tinha uma arma poderosa e sua própria força era superior à média humana. Eu tampouco tentei reagir e somente fiquei ali parado, inerte, tratando de não pensar na dor horrível que sentia. No momento final, eu vi a vida deixar os olhos dela, mesmo que ela não pudesse morrer. Pelo menos, não organicamente. Mas eu sim. E naquele instante entendi que sua obsessão em encontrar a tristeza seria o fim de nós dois.
Uma adaptação dessa história faz parte da duologia de ficção científica “Alma Artificial”, da editora Cartola. Conheça mais histórias comprando o livro ;)
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