Não quero esquecer de quem se foi

Um dia percebi que já não me lembrava mais de como era a voz do meu pai

Regiane Folter
5 min readApr 7, 2022

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O som simplesmente sumiu, desapareceu da minha mente. Foi embora, assim como ele. Acredito que meu cérebro de criança tenha tentado guardar a lembrança, e até conseguiu preservá-la pelo tempo que pode. Só que foram tantos os anos sem escutar a voz dele — tenho mais anos vividos sem ele que com ele. Não deu: a cuca precisou liberar espaço pra outras memórias e esse arquivo pouco acessado foi deletado sem dó nem piedade.

No dia que percebi que já não sabia como a voz do meu pai soava, primeiro me senti chocada. Como pode uma filha não lembrar da voz do pai, algo tão fundamental, tão representativo da pessoa? Depois, só fiquei triste.

Tentei recuperar a recordação, fechei os olhos e escavei na memória alguma cena dele falando comigo, me dizendo palavras de conforto ou até mesmo brigando por causa de alguma diabrura. Sem sucesso. Até consegui me lembrar de momentos que vivemos juntos, mas as lembranças aparecem congeladas no tempo. Como um filme antigo que até tem legenda, mas nada de som. Se foi. A única coisa que ficou é essa certeza de que ele pronunciava a letra “r” de uma forma curiosa; não arrastado como quase todo mundo que conheço da minha bolha paulistana. Era um “r” forte, agudo, arisco. Tenho certeza de que ele falava assim. Mas se você me perguntar, não vou saber repetir o som pra explicar.

Essa não foi a única coisa que esqueci sobre o meu pai. Sem novas vivências para renovar as memórias, parece que a mente, tão prática, vai perdendo o interesse. Esqueci das suas expressões, de como era sua risada e de como ficava seu rosto quando chorava. Não lembro do seu abraço, nem se caminhava de um jeito engraçado, ou como era jogando tênis. Não lembro se tinha algum tique nervoso ou alguma cicatriz. Do que sim lembro é do efeito da quimeoterapia, do mau humor, de algumas piadas e do cheiro do cabelo dele, que é igual ao cheiro do cabelo do meu irmão. Coisas random. Cada vez que registrei uma nova lembrança perdida, doeu. Mas depois passou. Bendito tempo, conserta tudo. Mas também tem essa mania de apagar memórias valiosas. Ninguém é perfeito, né?

Muitos anos depois, voltei a ter contato com a morte e voltei a me esquecer de pequenas coisas do ser querido que partiu. Dessa vez foi um gatinho de estimação, meu primeiro pet oficial; os bichinhos que tive antes eram meus, sim, mas eram muito mais da minha mãe, a pessoa que realmente cuidava deles. Eu só estava para brincar. Com o Thelmus, foi diferente. Era responsável por ele, tinha que brincar, mas também cuidar, limpar, dar de comer, levar no veterinário. Me encantei com a experiência de adotar um gatinho e em pouquíssimo tempo me senti muito confortável no papel de mami de pet. Infelizmente durou pouco, porque apenas alguns anos depois de adotá-lo, ele teve um mal súbito e morreu.

Foi uma das piores coisas que vivi. A falta do meu Thelmus era tenebrosa, mas a culpa era mil vezes pior. Ele se foi e a sensação que ficou foi que tudo poderia ter sido diferente se eu tivesse feito algo mais. Se tivesse cuidado melhor, tentado algo diferente, buscado outro veterinário, sei lá. Só sei que ele era minha responsabilidade e eu falhei miseravelmente. Sensação horrível

O tempo passou, misericordioso e impiedoso na mesma medida, e enquanto a dor diminuia, também diminuiam as lembranças do Thelmus dormindo no meu colo, caminhando pela casa, pulando nos lugares mais improváveis, miando baixinho pra chamar nossa atenção. Fui esquecendo, esquecendo, esqueci. Ainda me lembro dele, claro. Mas alguns detalhes já se perderam. As manias que ele tinha, seu brinquedo preferido, onde gostava de ficar, do que não gostava de fazer… Devagarinho, de forma implacável, essas miudezas vão entrando no vórtice da memória pra nunca mais voltar. É frustrante.

Pouco tempo depois do Thelmus voltamos a adotar, dessa vez dois gatinhos em vez de um só. Me apaixonei pela duplinha do barulho à primeira vista e logo voltamos a ser uma família numerosa e feliz. Porém, alguns aninhos depois, dona Morte voltou a nos visitar. Parecia impossível que o raio caísse duas vezes no mesmo lugar, mas caiu! E a gatinha fêmea, nossa serelepe Amarela, virou estrelinha no céu. Dessa vez, mais madura e curtida da vida, me culpei menos. Doeu igual.

Só que com a Amarela decidi que não ia repetir o mesmo erro: não queria esquecer mais, não queria correr o risco de perder todos os detalhes maravilhosos que faziam dela, ela. Era preciso arrumar um jeito de cuidar das memórias, afastá-los do tempo e guardá-las em algum lugar onde eu sempre pudesse encontrá-las. Então recorri à ferramenta que sempre busco nos momentos ruins: escrevi.

Fiz uma lista de todas as coisinhas que podia me lembrar da Amarela. Hábitos, jeitos, características. Fui escrevendo, escrevendo, sem parar. Até sentir que tinha colocado no papel uma boa quantidade de referências. Até sentir que tinha tirado todas as lembranças de dentro de mim pra preservá-las em um lugar mais seguro.

Falei sobre como ela adorava sair no terraço, sentir o ventinho nos bigodes e o sol na sua pele manchadinha; falei sobre como miava baixinho, tão baixinho que me fazia pensar se não seria ela uma gata tímida; falei sobre como gostava de dormir debaixo do cobertor com a gente no inverno; sobre como comia o patê, tão elegante, tão cuidadosa, pra não se sujar; sobre como lutou até o último segundo contra a doença incurável que finalmente a levou de nós.

Guardo páginas e páginas sobre a Amarela num dos muitos caderninhos que tenho, meus portos-seguros quando o mundo real está difícil demais. Se você ler a lista de lembranças da gatuna, talvez não entenda nada. Ou talvez pareça uma radiografia fria demais para representar um ser de carne e osso. Para mim, essa lista foi e ainda é um salva-vidas. Consegui estender pelo menos um pouco mais o prazo de validade das lembranças da Ama e isso me trouxe muita serenidade, algo essencial pra lidar com algo tão brutal como a morte. Ela, que é tão certeira e tão rigorosa como o tempo.

Não dá pra lutar contra o tempo, nem com os efeitos dele em nós. O que nos resta é usar o tempo que temos da melhor maneira possível, vivendo as coisas com o peito aberto e confiando em nossos amuletos pra ter força de seguir em frente quando o coração está partido.

Ama ❤️

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Regiane Folter

Escrevi "AmoreZ", "Mulheres que não eram somente vítimas", e outras histórias aqui 💜 Compre meus livros: https://www.regianefolter.com/livros